A família que sobreviveu após ter barco afundado por 'baleias assassinas'
A família Robertson passou 38 dias à deriva com água fresca e suprimentos escassos — a história deles revela as condições extremas que o corpo humano é capaz de suportar. Havia sete pessoas a bordo quando o barco afundou — elas tiveram que se espremer em um bote de seis pessoas para sobreviver
Javier Hirschfeld/BBC
O vento tinha diminuído na noite anterior, mas o mar ainda estava bastante revolto, especialmente para um barco como o Lucette.
As ondas estavam na altura da cabeça, o que, para uma pequena embarcação, era algo arriscado. Ao longe, um relevo no mar se movia em direção à embarcação.
A bordo, estava a família Robertson. Eles estavam a 320 quilômetros a oeste de Galápagos — era o segundo dia dos 40 dias de viagem que fariam até as Ilhas Marquesas, na Polinésia Francesa, como parte de uma volta ao mundo.
Alguns membros da família tinham dormido. Pela manhã, o café estava esquentando no fogão e a família se preparava para voltar à sua rotina diária. Mas os fatos que viriam logo a seguir mudariam para sempre suas vidas.
Douglas Robertson, que tinha 18 anos na época, estava na cabine com seu irmão mais novo, Sandy, quando avistou a barbatana triangular de uma baleia assassina.
“Puxei a vara de pesca e tinha fisgado uma lula enorme, eu disse então ao meu irmão: ‘Tem peixes grandes por aqui'”, relembra.
“Porque onde tem lula, tem baleia.”
Foi então que vieram os impactos. Foram três ao todo, um atrás do outro.
A escuna de madeira de 43 pés (13m) foi levantada no ar.
O barulho foi tão alto que só poderia significar que a quilha, estrutura de madeira que se estende por todo o comprimento da embarcação na parte inferior do casco, com 3 pés (0,9 m) de profundidade e 1 pé (0,3 m) de largura, havia se partido.
“Pensei que tínhamos encalhado”, diz Douglas, hoje com 65 anos. “Devíamos ter batido no fundo de alguma forma, mesmo estando em alto mar, porque não conseguia pensar em outra explicação para o que aconteceu. Olhei pelas escotilhas e perguntei: ‘Papai, você está bem?’ E ele já estava com água nos tornozelos.”
Enquanto isso, uma das baleias, a maior das três, estava sangrando no mar devido a um ferimento na cabeça. Mas o que levou os animais a atacar a embarcação?
Não é novidade que as baleias atacam barcos, mas isso acontece muito raramente. A cena principal de Moby Dick é baseada em um evento real de 1820, no qual uma cachalote atingiu e afundou um navio baleeiro de 87 pés (26,5 m), o Essex, no Pacífico Sul. Todos os 20 tripulantes sobreviveram ao naufrágio, mas apenas oito voltaram com vida aos EUA após uma árdua jornada em que recorreram ao canibalismo.
As cachalotes brigam entre si golpeando com a parte frontal mais dura da cabeça.
Pode ser que a cachalote que afundou o Essex tenha confundido o navio com outro macho. No entanto, é muito mais provável que a colisão tenha sido uma situação aleatória.
Os navios baleeiros navegavam intencionalmente em direção às cachalotes, antes de ativar as embarcações menores das quais os arpões são lançados. Uma colisão acidental não seria novidade.
As baleias assassinas também podem brigar assim, mas é mais comum caçarem em grupo para atacar grandes presas, como tubarões e baleias. O Lucette, uma embarcação muito menor, pode ter sido confundida com uma baleia pelo casco — e talvez por isso a tenham atacado.
Abandonar o navio
Douglas Robertson, hoje com 65 anos, foi jogado ao mar quando o iate da família foi atingido por baleias assassinas
Javier Hirschfeld/BBC
Logo após a colisão, o pai de Douglas, Dougal, um marinheiro experiente, pediu que a família abandonasse a embarcação. Ele ligou o rádio para enviar um sinal de SOS enquanto sua esposa, Lyn, pegava os suprimentos de emergência.
“Eu olhei para ele”, diz Douglas, “e pensei ‘devo estar sonhando'”. Levava alguns minutos para o rádio ligar — e o Lucette afundou antes disso.
O barco estava equipado com um bote salva-vidas inflável e um bote auxiliar de madeira de 10 pés — Douglas amarrou ambos juntos antes de a água invadir o convés.
“Eu pensava o tempo todo: é assim que vou morrer. Vou ser comido por baleias assassinas sanguinárias”, diz. “E ficava sentindo as minhas pernas para ver se ainda estavam lá, porque ouvi dizer que você não sente a mordida. Você apenas nota que não tem mais pernas. Ficava sentindo e pensando ‘pelo menos ainda tenho minhas pernas’.”
Robin Williams, um jovem a quem a família havia oferecido uma vaga no barco em troca de trabalho, estava dormindo após ter ficado em vigília a noite toda, quando a embarcação começou a afundar. Ele levantou ainda cambaleante e entrou no bote inflável.
Um lado afundou na água e depois ficou completamente submerso, flutuando logo abaixo da superfície — ao alcance deles, mas inutilizável.
Com isso, as sete pessoas que estavam a bordo do iate — Douglas, a mãe, o pai, os dois irmãos gêmeos, a irmã e Williams — não tiveram escolha a não ser se espremer no bote de seis pessoas, no qual teriam de sobreviver, à deriva, no oceano.
A hierarquia de sobrevivência
Os Robertsons precisavam de um plano.
“O tempo de sobrevivência sem ar é medido em minutos, com déficit de temperatura é medido em horas, sem líquido é medido em dias, e sem alimento é medido em semanas”, diz Mike Tipton, fisiologista da Universidade de Portsmouth, no Reino Unido, especializado em sobrevivência em ambientes extremos.
A família teve um pouco de sorte — o naufrágio foi nos trópicos, onde a temperatura do mar não era baixa o suficiente para provocar um choque térmico.
“Todas as grandes jornadas de sobrevivência, de qualquer duração, ocorrem nos trópicos”, diz Tipton. “Se você está fora (dos trópicos), não sobrevive tempo suficiente para escrever um livro a respeito.”
Os dois primeiros itens na hierarquia de sobrevivência estavam sob controle por enquanto.
Mas um dos fatores que contribuíram de maneira significativa para a sobrevivência dos Robertsons nos instantes logo após o naufrágio — o fato de estarem nos trópicos — também começaria a se tornar uma complicação. O calor os faria suar.
“A sobrevivência está no equilíbrio; especificamente, no equilíbrio de fluidos, da temperatura e de energia”, diz Tipton.
“Você pode minimizar sua necessidade de fluidos, se certificando de que, se precisar fazer algo, deve fazer na parte mais fria do dia, garantindo uma boa ventilação e evitando suar basicamente.”
Cercados por água, seria tentador pular no mar para se refrescar. Mas, segundo Tipton, isso deve ser evitado, uma vez que a pele fica incrustada de sal, o que pode tirar a umidade e causar irritação.
No entanto, mergulhar uma das mãos dentro d’água é perdoável e provavelmente muito eficaz.
“(As mãos) têm um fluxo sanguíneo muito alto quando você está com calor”, diz Tipton.
“E é uma área de superfície relativamente pequena em relação ao corpo todo. Se a temperatura corporal interna aumentar, o corpo continuará enviando sangue para as mãos, e você pode perder a mesma quantidade de calor pelas mãos que por meio de um colete com gelo ou ar-condicionado.”
Chuva: alívio e medo
Flutuando em mar aberto, mas protegidos de ameaças iminentes, os Robertsons tinham tempo agora para traçar um plano de resgate. Eles decidiram então seguir para o norte, nas imediações da linha do Equador, para os chamados Doldrums.
Essa região do mar, onde os ventos do norte e do sul se encontram, é conhecida por suas águas calmas e ventos de superfície, que podem tornar o percurso extremamente lento — daí o nome Doldrums, que significa marasmo, dado por marinheiros entediados.
Mas foi exatamente por causa dessas condições que os Robertsons decidiram seguir para lá. A falta de ventos na superfície é o que o torna o local ideal para a sobrevivência. A temperatura do mar nas imediações da linha do Equador pode chegar a 35°C durante a maior parte do ano. A umidade da superfície do oceano sobe verticalmente nessa região, antes de resfriar e retornar ao mar como chuva.
Os Robertsons sabiam que choveria, pois já tinham navegado por lá a caminho de Galápagos. As nuvens pesadas poderiam ser um pesadelo para um marinheiro, mas para um náufrago eram uma chance de sobrevivência.
Eles planejaram remar para o meio do Oceano Pacífico, armazenar água e, na sequência, remar de volta para a América, levados por uma corrente. Eles estavam navegando na corrente equatorial sul, que flui para oeste.
Mas entre os Doldrums e a localização atual deles havia uma contracorrente a leste que os levaria de volta ao continente americano em 72 dias, segundo seus cálculos. Esse plano também os levaria pelas rotas marítimas que vão para Austrália e Nova Zelândia a partir da América, aumentando as chances de serem resgatados.
Às 10h da manhã do sexto dia, a sorte deles mudou. A menos de cinco quilômetros de distância, avistaram um navio. Dougal disparou cinco sinalizadores — deixando apenas um de reserva. Mas a embarcação nunca virou na direção deles.
“Foi um momento muito decepcionante para todos nós”, diz Douglas.
A despensa marinha
Uma jornada tão longa em mar aberto não seria fácil. Eles precisariam de comida, para começar.
“Todo mundo que já fez dieta sabe que no início você sente muita fome, mas que com o tempo deixa de sentir fome, sobretudo quando não está fazendo muita coisa”, diz Tipton.
Na hierarquia de sobrevivência, a comida está lá embaixo. Você pode sobreviver por várias semanas sem comer. Mas, para uma viagem de 72 dias, os Robertsons precisariam de comida.
Para sorte deles, há muito o que comer no Oceano Pacífico. Proteína, em particular, é muito fácil de encontrar. Eles pescaram peixes voadores e tartarugas marinhas — e secaram a carne ao sol para preservá-la.
“Na [terceira semana] nossas roupas tinham apodrecido completamente”, diz Douglas.
“Então estávamos meio nus, como homens das cavernas. Estávamos pegando animais com as mãos e usando a criatividade.”
Mas proteína não é realmente o que seu corpo precisa quando você está morrendo de fome e desidratado.
“Quando as proteínas são desnaturadas em aminoácidos, você fabrica subprodutos como amônia e ureia, que devem ser diluídos com líquidos”, diz Tipton. “Isso não ocorre com gordura e açúcar.”
Ou seja, sem água suficiente para beber, a proteína do peixe pode acabar intoxicando.
As tartarugas, no entanto, têm uma camada de gordura sob o casco, o que é muito mais útil para o corpo em uma situação de sobrevivência — e pode ser consumida a qualquer momento.
Douglas diz que a família reduziu a alimentação a um único pedaço de carne três vezes ao dia — e goles de água três ou quatro vezes por dia. Conseguir água suficiente era o maior desafio, apesar de estarem no meio do oceano.
Água por todos os lados
Douglas Robertson escreveu um livro contando a provação da família e como eles sobreviveram tanto tempo no mar
Javier Hirschfeld/BBC
Os Robertsons tiveram o cuidado de armazenar 10,2 litros de água fresca em latas. Mas não seria suficiente para 72 dias. Após cerca de 24 horas, se você deixar deliberadamente de beber água, o corpo entra em um modo de conservação de líquido.
Normalmente, o corpo humano requer cerca de 1,5 litros de água por dia, mas em situações de sobrevivência esse volume pode ser reduzido para cerca de 400 ml diários, de acordo com Tipton.
No pior dos cenários, pode diminuir ainda mais, para cerca de 200 ml — quando o corpo mantém a função renal essencial, mas “desliga” muitos outros processos, e o sangue se torna criticamente hipertônico.
O clima quente que havia colaborado para Douglas e a família sobreviveram ao naufrágio inicial agora se tornava inimigo deles.
“Se estiver muito quente, você vai perder meio litro de líquido por dia, por meio da pele”, diz Tipton.
Eles tinham duas outras fontes de água além da escassa reserva nas latas — água da chuva e condensação. Com um toldo por cima do bote, o suor e o vapor de água expirados pela família se condensariam nele.
“Ter uma maneira de coletar isso é basicamente uma maneira de reciclar o líquido corporal.”
O nunca se deve fazer, no entanto, é beber água do mar ou urina.
“A urina é cerca de 4% mais concentrada que o fluido corporal padrão”, diz Tipton. “Então, você precisaria diluí-la em uma quantidade enorme. E você nunca vai ter condição de fazer isso em uma situação de sobrevivência.”
Obter água potável suficiente estava se tornando um problema. A família chegou aos Doldrums, mas não estava chovendo. Por três dias, eles esperaram — e, esporadicamente, avistavam uma nuvem de chuva ao longe.
A solução foi beber o sangue das tartarugas marinhas que eles pegaram. Douglas lembra que era palatável e nada salgado — além de uma importante fonte de fluido para eles.
Os níveis extremamente baixos de água que a família estava bebendo, no entanto, afetaram seus corpos. Douglas se lembra de ter urinado apenas uma vez durante toda a provação que passaram — e quando o fez, a urina estava espessa e escura.
Quando privado de água dessa maneira, o organismo começa a reagir de formas estranhas. Quando alguns deles acidentalmente cortaram as mãos, ao segurar uma tartaruga, a família descobriu que não havia sangrado.
“O corpo é muito eficiente em sacrificar as extremidades para manter as funções do coração, pulmões e cérebro”, diz Tipton.
“Se você desidratar, verá que o fluxo sanguíneo periférico diminui porque o corpo está tentando manter a pressão sanguínea central. Eles não sangraram porque não havia sangue indo para lá. A vasodilatação máxima pode ser de três litros por minuto para a pele, enquanto a vasoconstrição máxima pode ser de 20 ml por minuto. É bem radical.”
Quando as extremidades perdem o fluxo sanguíneo em um ambiente mais frio, podem congelar — fenômeno conhecido como frostbite. Em ambientes quentes, podem levar à insolação. Sem conseguir enviar sangue para a pele, o corpo sacrifica um jeito fácil de se resfriar.
A família começou a sugar o líquido espinhal do esqueleto dos peixes e a comer os olhos dos animais. Douglas se lembra de ter gostado da experiência de morder o olho do peixe — e do breve alívio que isso trazia. Os olhos podem até conter uma pequena quantidade da vitamina C, além de uma explosão de líquido.
Finalmente, no quarto dia nos Doldrums, começou a chover.
“Ficamos muito felizes e bebemos aquela água”, diz Douglas. “Toda a carne estragou por causa da chuva, mas nós comemos o que podíamos e descartamos o resto.”
As tartarugas retornavam regularmente, o suficiente para que tivessem um suprimento constante de carne, junto com seus ovos e sangue para matar a sede.
Depois de um tempo, no entanto, a chuva começou a ser um problema. Eles precisavam tirar água do bote constantemente, fazendo turnos durante a noite, e acabaram exaustos devido ao esforço.
Por volta do 21º dia, eles avistaram a Estrela do Norte. Douglas conta que chegaram à conclusão de que tinham viajado 420 milhas (cerca de 676 km).
Resgate e aclimatação
Em 23 de julho de 1972, no 38º dia à deriva, avistaram uma segunda embarcação. Dougal acendeu o último sinalizador — e o segurou até queimar a mão. Desta vez, o barco virou e foi em direção a eles.
“Curiosamente, eles nos perguntaram se queríamos ser resgatados”, diz Robertson.
Eles foram salvos por um barco de pesca japonês.
“Uma corda desceu até o bote. Foi nossa primeira constatação de que estávamos salvos.”
A primeira coisa que Douglas pediu foi café. “Pareceu fantástico”, diz ele.
Mas ele não podia beber.
“Estávamos muito mal. Não sabíamos, mas nossa contagem de hemoglobina tinha caído. Deveríamos ter feito transfusões de sangue, mas nos alimentaram com água de coco.”
Há alguns exemplos recentes de resgates que mostram até que ponto o corpo humano resiste em condições extremas: os 12 meninos tailandeses que passaram 18 dias presos em uma caverna em 2018, e os 33 mineiros chilenos resgatados em 2010. Nos dois casos, todos sobreviveram.
“Quando eles saíram, receberam antibióticos de amplo espectro”, diz Tipton.
“Embora estivessem desesperados para comer, não podiam se alimentar. Todas as enzimas digestivas estavam reduzidas em termos de quantidade e de atividade. Colocar uma grande quantidade de comida no estômago, quando não há nada nele, é um risco.”
Os Robertsons chegaram ao Panamá, onde a embaixada britânica os colocou em um hotel. Foi neste momento que Douglas pôde desfrutar do prazer de pedir o que quisesse — e pediu três porções de bife e ovos no restaurante do hotel, o que o fez passar muito mal. Mas o fato de poder pedir a refeição já era alegria suficiente.
“Dougal escreveu no livro: ‘Chegamos a um auge de contentamento que nunca mais alcançaríamos em nossas vidas’. E, é verdade, não é possível alcançar esse auge de contentamento”, diz Douglas.
“Descemos no mercado e havia tartarugas sendo cortadas no açougue. Vimos os bifes de tartaruga com um olhar diferente.”
Fonte: MUNDO