Por que a ideia de que a América Latina pende à esquerda ou direita perdeu o sentido
Região entra em 2020 sem um rumo político único e com uma instabilidade crescente, envolvida em manifestações populares contrárias a quem quer que esteja no poder. Maurício Macri passa bastão a Alberto Fernández, em Buenos Aires, em 10 de dezembro de 2019
Agustin Marcarian/Reuters
Entre tantas incertezas que 2019 deixou a respeito da América Latina, ao menos uma ideia parece ter ficado evidente: perdeu o sentido afirmar que a região está dando uma guinada à direita ou à esquerda.
Na região, movimentos pendulares de um polo a outro do espectro político marcaram a última década, que começou com o que ficou conhecido como “maré rosa”, com a eleição de partidos de esquerda em quase todo o subcontinente.
Anos depois, a tendência se inverteu: candidatos mais à direita ascenderam ao poder em países como Argentina, Chile, Colômbia, Peru e Brasil.
Com a eleição do político de esquerda Andrés Manuel López Obrador no México, em julho de 2018, alguns analistas políticos chegaram a se perguntar se a região começava a dar uma nova guinada ideológica.
Mas o balanço da última “maratona eleitoral” na América Latina, com 15 eleições desde 2017, não sinaliza nem uma coisa nem outra.
A região entra em 2020 sem um rumo político único e com uma instabilidade crescente, envolvida em manifestações populares contrárias a quem quer que esteja no poder, seja de direita ou de esquerda.
Em cinco das seis eleições que aconteceram em 2019 na região, os latino-americanos votaram para tirar o partido que estava no poder.
Uma delas, a da Bolívia, nem chegou exatamente ao fim: diante de acusações de fraude, o presidente Evo Morales renunciou ao que seria seu quarto mandato e afirma que foi vítima de um golpe de Estado.
O humor anti-governo marcou os protestos mais recentes na própria Bolívia, que era capitaneada pela esquerda desde 2003, e no Chile, presidido pelo conservador Sebastián Piñera.
“Essa ideia de que bastaria colocar a direita ou a esquerda no poder na América Latina e os problemas estariam resolvidos não funciona hoje”, afirma o cientista político Maurício Santoro, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, em imagem de arquivo
Carlos Jasso/Reuters
Velhos problemas, novas frustrações
Um fator fundamental para o aumento do mal-estar social na América Latina estaria a desaceleração (ou em alguns casos estagnação) econômica em boa parte dos países a partir de 2014, com o fim do ciclo de boom das commodities que marcou os anos 2000.
A primeira reação à ela, em diversos países, foi a troca de governos de esquerda por outros de direita — o que, na maioria dos casos, não se traduziu em recuperação da atividade.
A taxa média de crescimento da região em 2019 será de 0,1%, de acordo com a última projeção da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal).
Para 2020, a estimativa é de 1,3%.
“Se esse cenário se confirmar, o período entre 2014 e 2020 será o de menor crescimento na região nas últimas quatro décadas”, disse a organização em relatório divulgado em dezembro.
À questão econômica se soma uma série de problemas ainda não resolvidos na América Latina, como a desigualdade, a violência e a corrupção, que contribuem para aumentar a insatisfação popular em relação aos políticos que estão no poder e às elites políticas de forma geral.
A realidade se choca com a expectativa de milhões de latino-americanos de consolidar sua ascensão à classe média, um sonho que hoje parece distante para muitos.
“As ideologias foram superadas. Cada uma teve sua oportunidade e não conseguiu entregar o que se esperava”, avalia Marta Lagos, diretora da pesquisa Latinobarómetro, referindo-se à motivação dos protestos que marcaram o segundo semestre de 2019.
A última edição da pesquisa anual, ressalta ela, indicou que 70% da população da região acredita que, em seus países, “se governa para uma minoria” e que os partidos políticos estão entre as instituições democráticas com menor nível de confiança — apenas 13%.
“O ciclo eleitoral atual na América Latina revela um aumento da polarização política, assim como a intensidade da frustração com as elites políticas”, diz o Instituto para Democracia e Assistência Eleitoral Internacional (IDEA) em relatório de dezembro, que teve como tema “O estado da democracia no mundo e nas Américas em 2019”.
A análise destaca ainda que “o desencanto impulsionou os eleitores a apoiarem diferentes líderes anti-sistema, tanto à direta quanto à esquerda”.
Manifestante chuta lata de gás lacrimogêneo em protesto em Santiago, no Chile, em imagem de arquivo
Rodrigo Arangua/AFP
A tendência: mudanças de governo
Assim, mais que uma inclinação em direção a um dos polos do espectro político, a tendência que parece se consolidar é a de uma mudança de governos.
Os argentinos, por exemplo, em vez de reelegerem o conservador Mauricio Macri, preferiram em outubro reconduzir o peronismo ao poder — optaram pela chapa que reunia Alberto Fernández e a ex-presidente Cristina Kirchner como vice.
A oposição também venceu no Uruguai. O candidato de centro-direita Luis Lacalle venceu em novembro depois de 15 anos de gestão da coalização de esquerda Frente Amplio.
No Panamá, por sua vez, o candidato de oposição era de centro-esquerda: Laurentino Cortizo foi eleito em maio. Na Guatemala, Alejandro Giammattei venceu em agosto em sua quarta candidatura à Presidência.
Alguns meses antes, em fevereiro, Nayib Bukele rompeu com 30 anos de bipartidarismo e alternância entre a esquerda e direita “tradicionais” em El Salvador.
Em todos os casos, os candidatos foram eleitos com a promessa de renovação política e recuperação econômica, de maior zelo com os recursos públicos e maior firmeza no combate ao crime de maneira geral e à corrupção.
São as mesmas expectativas que levaram um candidato de direita como Jair Bolsonaro e outro de esqueda como López Obrador a assumirem em 2018 o comando das maiores democracias da região: Brasil e México.
Manifestantes favoráveis a Evo Morales protestam em Cochabamba, na Bolívia, em imagem de arquivo
Natacha Pisarenko/AP Photo
Tudo isso acontece enquanto a sensação de bem-estar segue diminuindo em vários países da América Latina, conforme o Relatório Mundial sobre a Felicidade, produzido pela Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.
“A infelicidade se traduziu em votos contra governos em exercício em diversas partes do globo”, conclui a última edição do relatório.
O texto cita o caso específico do México, onde, após a eleição de López Obrador, observou-se uma recuperação dos níveis de satisfação para patamar próximo ao registrado em 2013.
“Os mexicanos estão otimistas em relação ao novo governo, mas, caso não haja mudanças concretas nos próximos 12 meses, esse otimismo pode virar uma grande frustração”, afirma o economista Mariano Rojas, que já contribuiu para o relatório em anos anteriores.
Para ele, o desafio da América Latina hoje é encontrar um modelo de desenvolvimento que contemple, além do crescimento econômico, o bem-estar social.
“O que vemos é mais uma busca que uma alternativa clara”, afirma. “As pessoas canalizam suas frustrações contra o governo, mas não temos exatamente uma alternativa… e pensar que a alternativa é simplesmente a direita ou a esquerda seria um grave erro.”
Fonte: ECONOMI