Em estudo pelo governo, privatização de órgão que analisa patentes deve encarecer medicamentos
“Insana”, “insensata” e “preocupante”. É assim que empresários brasileiros da indústria farmacêutica e especialistas em acesso a medicamentos avaliam a proposta de privatização do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi), atualmente em estudo pelo Ministério da Economia.
Para eles, a medida vai prejudicar a indústria nacional e favorecer as multinacionais, responsáveis por 80% dos pedidos de patente no Brasil. Especialistas alertam que, se a proposta for implementada, novos remédios ficarão mais caros.
O Inpi é o órgão do governo federal responsável por avaliar pedidos de marcas, patentes, programas de computador, entre outros, incluindo novos medicamentos. Ao receber uma patente, uma empresa ganha o monopólio de venda do produto – e acaba cobrando mais por não haver concorrentes no mercado.
O Ministério da Economia, contudo, avalia extinguir o Inpi e criar a Agência Brasileira de Desenvolvimento e Propriedade Industrial, que seria incorporada ao Sistema S, conjunto de organizações como Sesc, Sesi e Senai, nas quais a gestão é privada. A mudança, que deve ser feita por meio de medida provisória, vem recebendo críticas por abrir brecha para o lobby do setor privado, além da possível aprovação de patentes indevidas.
“Não existe nenhum escritório de propriedade industrial do mundo que não esteja inserido dentro da estrutura de governo”, observa a juíza Márcia Nunes de Barros, titular da 13ª Vara Federal do Rio de Janeiro, especializada em matéria previdenciária e propriedade intelectual.
Lobby da indústria
A saúde será uma das áreas mais afetadas pela mudança porque as patentes farmacêuticas afetam diretamente o preço dos remédios. O efeito é imediato no orçamento público, pois o maior comprador de medicamentos do país é o Ministério da Saúde, com gastos de cerca de R$ 19 bilhões por ano.
“Essa proposta transfere para o setor privado uma responsabilidade do Estado. Há um evidente conflito de interesse”, afirma Jorge Bermudez, chefe do Departamento de Política de Medicamentos e Assistência Farmacêutica da Fiocruz. “Por esse modelo [privado], aumentam as chances de serem concedidas patentes indevidas”, diz Reinaldo Guimarães, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Outro problema de vincular a análise de patentes farmacêuticas a uma entidade privada é enfraquecer a isenção e a imparcialidade dos examinadores, que ficariam sujeitos ao lobby das empresas, analisam pesquisadores
“Com um Inpi fragilizado e que não seja público, ele não terá força para regular o setor privado. E o setor privado não pode regular o setor privado”, diz Pedro Villardi, coordenador do Grupo de Trabalho em Propriedade Intelectual, que avalia o impacto das patentes na saúde pública.
Quando uma patente de medicamento é concedida, a empresa ganha exclusividade de 20 anos para vender o produto no mercado. No caso do Brasil, a Lei de Patentes permite que o tempo de monopólio seja acima de duas décadas, o padrão internacional. Isso acontece quando o Inpi leva mais de 10 anos para confirmar uma patente – no setor farmacêutico, o tempo médio é de 13 anos.
Proposta divide indústria nacional e multinacionais
Segundo documento interno do Ministério da Economia, a proposta busca maior eficiência do Inpi e o “enxugamento da máquina pública federal”. O instituto, no entanto, opera no azul. A previsão orçamentária para 2020 é de R$ 513 milhões em receitas e R$ 333 milhões em despesas – saldo positivo de R$ 180 milhões.
“Esse argumento [do governo] não se sustenta. Se querem eficiência, as receitas do Inpi deveriam permanecer no órgão, e não serem direcionadas ao Tesouro, como ocorre hoje em dia”, afirma Guimarães, da UFRJ.
Procurado, o Inpi não quis comentar. O Ministério da Economia não respondeu aos questionamentos enviados pela reportagem e optou por não se manifestar.
O presidente do Inpi, Cláudio Furtado, negou que o órgão será extinto, mas deixou aberta a possibilidade de sair da estrutura do governo. “O INPI pode, sim, deixar de ser uma autarquia [federal], mas com o objetivo de tornar-se um escritório de padrão mundial”, afirmou em encontro realizado em dezembro no Iate Clube do Rio de Janeiro.
Representantes da indústria nacional procurados pela Repórter Brasil se mostraram preocupados com a medida em estudo pelo ministério. “O Inpi tem hoje autonomia como uma agência reguladora, e por isso toma decisões independentes. Fragilizar o órgão de propriedade intelectual vai causar insegurança jurídica”, afirma Sérgio Frangioni, sócio da Blanver e presidente da Abifina, associação que reúne as maiores farmacêuticas do país.
“Preços dos medicamentos sobem quando se concedem patentes além da conta”. Reinaldo Guimarães, da UFRJ e Abrasco
O dono do laboratório brasileiro recordista em patentes, Ogari Pacheco, do Cristália, avalia a proposta como “insana”. “É mais seguro da forma como é hoje, ligado a um órgão público”, diz.
Já a Interfarma, associação que representa no Brasil as empresas estrangeiras, evitou comentar a retirada do Inpi do governo federal. A entidade defende “estrutura robusta, com transparência e eficiência, para a emissão de patentes”, mas não respondeu se isso ocorreria sob gestão privada.
“É preciso que haja uma proposta formalizada ou anunciada pelo governo para que o setor produtivo e inovador possa manifestar suas contribuições”, diz a nota enviada à Repórter Brasil.
Plano de ataque
A proposta de privatizar o Inpi ocorre poucos meses após o órgão colocar em vigor um plano para reduzir drasticamente a fila de pedidos de patente – que hoje conta com 155 mil solicitações à espera de análise, para um total de 320 examinadores (484 pedidos por servidor).
“Com o plano, passamos a fazer um exame mais precarizado”, disse um examinador do Inpi à Repórter Brasil, na condição de anonimato. Ele afirma que a produtividade do órgão aumentou porque a nova gestão exige que o servidor faça mais análises de patente para que seu salário se mantenha o mesmo.
O advogado Luiz Edgard Montaury Pimenta, presidente da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual (ABPI), reconhece que a qualidade do exame caiu com o plano do governo. Mas ele vê vantagens em um trabalho mais rápido do Inpi. “Pior é levar 13 anos para conceder uma patente farmacêutica e ampliar o tempo de monopólio. Quem se sentir prejudicado [por uma patente mal concedida] pode pedir a anulação”, opina.
Especialistas em acesso a medicamentos discordam e dizem que a saída para os problemas do Inpi não passa pela precarização do órgão ou do trabalho dos servidores. “Quanto pior o exame de um pedido, mais patentes são concedidas. E quanto mais medicamentos são patenteados, mais caros eles são”, diz Villardi.
“O que deixa remédio mais barato é concorrência”, resume Bermudez, ressaltando que o preço de outros produtos também serão afetados pela possível privatização do Inpi, como os agrotóxicos.
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Fonte: Repórter Brasil